Estou sentada na minha cadeira de couro velha, que pertenceu ao meu avô.
Uma cadeira que conta histórias e esconde certamente segredos. Sempre quis esta cadeira, talvez porque represente força, sabedoria - não sei.
Sempre a desejei. Quando era miúda ía ter com o meu avô ao escritório. Ele sentava-me no seu colo e rodava-a, e eu queria saber os pensamentos que ela escondia. Tantas decisões tomadas, tantos problemas resolvidos, tantas notícias dadas - sentado nesta cadeira. Uma cadeira velha e gasta e caduca.
Lembro esconder-me debaixo da secretária a ler O
Principezinho. Admirava a grandeza desta cadeira, enquanto detestava aqueles homenzinhos prepotentes, sentados naqueles planetas minúsculos. E adorava a rosa e a raposa. Durante muito tempo pensava que teria uma raposa. Afinal, até tive. O meu pai era caçador e uma vez matou uma.Mandou embalsamá-la e deixou-a no escritório do meu avô; depois sucederam-se as cabeças de veado, as peles curtidas...
Aqueles olhos que pareciam vivos assustavam-me e só ía ao escritório para espreitar de mansinho a cadeira que eu sabia pertencer-me. Imaginava-me sentada nesta cadeira a exercer ordens como o meu avô, imaginava-me crescida. Bem, sentada nela os meus pés não chegavam ao chão...
Quando os meus avós morreram a cadeira foi oferecida ao meu pai - fiel amigo e companheiro da caça aos tordos. Passavam dias nas coutadas do sul, ao volante do velho Patrol - ainda existe, está na garagem, todo podre, a cair de velho, mas continua a ser uma relíquia - as histórias que ele guardará...
Bem, não sei porque vos conto isto, talvez porque estou com algum tempo. Estou em casa. Ouço a Orquestra de Varsóvia com José Cura - este homem não canta com o coração, canta com a alma.
Enfim, preparo-me para mais uma tarde de consultas, intervaladas com algumas pesquisas na net, alguns cigarros pensativos (ao bom estilo do Eça) e um ou outro café. Há tempo! Não tenho assim muitos pacientes, até porque sou ainda novata, nem consultas dou todos os dias.
Há tempo. Tempo a mais, por vezes.